segunda-feira, 12 de abril de 2010

Autista, simulação de "jeito normal"


Autista, simulação de "jeito normal"

AMARÍLIS LAGEda Folha de S.Paulo


RESOLUÇÃO POLÊMICA


Movimento diz que autismo não é doença
Problemas de comunicação. Comprometimento da sociabilidade. Alterações comportamentais. Essas são as três principais bases para identificar uma pessoa com autismo - síndrome descrita nos anos 40 que pode se manifestar de formas severas, em que a pessoa parece totalmente alheia ao que se passa ao seu redor, a níveis brandos. Mas e se essas características não constituírem um problema, e sim uma forma diferente de pensar, tão válida quanto qualquer outra?
Para os adeptos de uma nova corrente chamada neurodiversidade, a resposta a essa pergunta é clara. Assim como não há uma cor de pele "certa", afirmam, também não há uma forma "correta" de pensar. O assunto, porém, é polêmico tanto entre parentes de autistas quanto no meio médico.
Há cerca de um mês, o debate chegou oficialmente por aqui, com a criação da primeira entidade voltada à defesa da neurodiversidade no país: o Movimento Orgulho Autista Brasil.
O grupo, que já desenvolvia algumas ações desde o meio do ano passado, integra agora uma rede espalhada por diversos países, especialmente na Oceania e na América do Norte. O termo foi criado nos anos 90 por Judy Singer, especialista em sociologia do autismo. Segundo ela, o conceito não se restringe aos autistas, mas a todas as pessoas que, por qualquer motivo, possuem um padrão diferente de pensamento.
Singer decidiu se dedicar ao tema após observar o surgimento de comunidades virtuais nas quais autistas trocavam experiências e questionavam a forma como eram tratados socialmente. Era a primeira vez, desde a década de 40, quando o autismo e a síndrome de Asperger (um tipo mais brando de autismo) foram descritos cientificamente, que essas pessoas --notadamente conhecidas por terem dificuldades para se relacionar-se mostravam capazes de criar uma rede social para defender seus próprios interesses.
"Quatro aspectos principais permitiram que isso acontecesse", disse Singer à Folha. O primeiro foi o surgimento de outro movimento que buscava direitos iguais: o feminismo. "O feminismo deu às mães a autoconfiança necessária para mudar a idéia de que o autismo era causado por mães que criavam mal seus filhos", diz Singer.
Outro fator foi a ascensão dos grupos de defesa de pacientes, aliada à diminuição da autoridade dos médicos --que demoravam a diagnosticar o problema. Tudo isso foi acelerado pela internet. "Ela permitiu que as pessoas trocassem informações livremente, sem a mediação feita por médicos."
Ao mesmo tempo, o crescimento de movimentos políticos formados por pessoas com diversos tipos de deficiência estimulou alguns adultos autistas a pesquisar sobre a auto-representação.
A popularização da internet, mais uma vez, teve um papel fundamental nesse processo. "Foi o que permitiu o movimento de auto-representação dos autistas, pois é a "prótese" essencial --algo que os transforma de indivíduos introvertidos e isolados em uma rede de seres sociais, o que é um pré-requisito para uma ação social efetiva, e em uma voz na arena pública", afirma Singer.
Um desses primeiros grupos foi a ANI (Autism Network International), que surgiu, em 1992, entre autistas da Austrália e dos Estados Unidos. De acordo com Jim Sinclair, coordenador da rede, a idéia surgiu porque os autistas não se sentiam totalmente confortáveis nas comunidades sobre o assunto criadas por especialistas e familiares de autistas.
Afinal, aquelas pessoas, por mais interessadas que fossem no tema, eram "neurotípicas" --termo criado por autistas para definir quem tem um desenvolvimento neurológico considerado normal.
Entre outras diferenças, diz Sinclair, as comunidades "neurotípicas" queriam proteger os autistas, enquanto os próprios autistas buscavam liberdade para correr riscos.
Ao longo dos anos, outros grupos foram criados, assim como sites disseminando a neurodiversidade --entre eles, o www.autistics.org, em que há um link para o falso e divertido Institute for the Study of the Neurologically Typical, que brinca com as características dos "neurotípicos".
Ali, o comportamento "normal" é ironicamente considerado "um distúrbio neurológico caracterizado pela preocupação com normas sociais". Além disso, satiriza o site, "pessoas 'neurotípicas' freqüentemente acham que a forma como vivenciam o mundo é a única correta, têm dificuldades para ficar sozinhos e são intolerantes com as diferenças".
Anticura - Seja em tom bem-humorado ou não, a mensagem divulgada por esses grupos costuma ser a mesma: que o autismo é uma diferença, não uma doença. Ativistas mais radicais levam a idéia de neurodiversidade além. Defendem que remédios e terapias alteram a subjetividade única do autista e criticam o que consideram uma prescrição excessiva de drogas para controlar o comportamento.
Na contramão, surgiram organizações como a "Cure Autism Now" (cure o autismo agora), que afirma já ter destinado US$ 31 milhões a pesquisas voltadas a evitar ou reverter quadros de autismo.
De acordo com o psiquiatra Marcos Tomanik Mercadante, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), características pessoais passam a ser consideradas doenças quando levam a uma dificuldade de adaptação. "Parte do conceito [da neurodiversidade] é correta. Os autistas têm um cérebro diferente, e isso não é, necessariamente, uma patologia. Mas a maioria deles não consegue conduzir a própria vida. É um modo de ser no mundo; mas, neste mundo, um modo desfavorável."
Para a presidente da Associação Brasileira de Autismo, Marisa Silva, o risco da visão anticura é desestimular a realização de tratamentos que podem melhorar a qualidade de vida dos autistas.
"Uma criança com autismo leve que não for trabalhada terá, quando adulta, tantos problemas quanto um autista que era muito comprometido na infância. É um problema sério, não um modo de ser", diz ela, que tem um filho autista. "Jamais diria que é o jeito dele. Ele é muito comprometido. Gostaria que houvesse uma cura."
"Se minha filha fosse curada, ela não seria a Natália", diz Eliana Boralli, mãe de uma jovem autista de 20 anos e fundadora da Associação dos Amigos da Criança Autista. Ainda assim, afirma, gostaria de ter a oportunidade de dar à filha a opção de ser ou não autista.Autistas usam remédios para controlar aspectos da doença
Não existe uma medicação específica para autismo, mas muitas pessoas com esse diagnóstico tomam remédios para controlar aspectos como irritabilidade e problemas de sono.
Para Judy Singer, os remédios só devem ser administrados para aliviar sofrimento, "mas não para mudar as pessoas para que elas se encaixem em idéias limitadas sobre o que um ser humano deveria ser".
É uma opinião parecida com a de Fernando Cotta, presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil. "As pessoas precisam respeitar o autista. Isso não significa excluir a possibilidade de uma medicação. Se ele tiver problema de atenção, pode tomar algo que possa ajudá-lo, assim como quem tem gripe toma antigripal."
Instituições flexíveis - Judy Singer defende que algumas questões podem ser resolvidas sem remédios. "Vamos supor que uma criança autista seja muito irritável. Por que isso ocorre? Não será porque o ambiente escolar rígido não permite que ela se encaixe?"
As instituições, diz, devem se tornar mais flexíveis à inclusão de autistas. As escolas, por exemplo, deveriam adotar um modelo que reconheça múltiplas inteligências. "Essa variedade não é uma grande exigência e já existe na Austrália", diz.
Valeria Paradiz criou, nos Estados Unidos, a Aspie, uma escola voltada para crianças autistas. "Aspies" também é o apelido pelo qual alguns portadores da síndrome de Asperger se identificam. Defensora de uma visão "não patológica" do autismo, ela diz que a luta pela neurodiversidade se assemelha a qualquer movimento por direitos civis e que a sala de aula é um dos melhores lugares para ensinar essas crianças a exigir respeito às suas diferenças.
"Aqui, elas começam a aprender os principais elementos da experiência autista, percebem que a forma como o autismo é retratado varia muito e que a própria perspectiva delas é tão válida quanto a de especialistas e qualquer outra."
Para Kika Feier Goulart, mãe de Cibele, que tem 13 anos e é autista, a inclusão escolar é um dos principais desafios no Brasil. "Eles são muito visuais, e os professores não se esforçam para adaptar a aula a essa necessidade. Além disso, ou esperam demais dela, porque há o mito de que todo autista é um gênio, ou esperam menos do que ela pode oferecer."
O outro lado - Uma crítica feita aos grupos que pregam a auto-representação e a anticura é que eles não se referem a todos os autistas, mas apenas àqueles que têm síndrome de Asperger.
Casos de autistas famosos e bem-sucedidos, como a PhD em ciência animal Temple Grandin, ressaltam, são a exceção, não a regra. Estima-se que 70% dos autistas tenham algum tipo de retardo mental. Esse dado vem sendo questionado, pois se acredita que os testes aplicados não eram capazes de contemplar as capacidades dos autistas. Mas muitos pais relatam problemas intelectuais sérios nos filhos.
A crítica vem até de Singer. "Não concordo com pessoas que são obviamente autistas de alta capacidade e alegam falar por 'todos' os autistas", diz. A mãe e a filha de Singer têm a síndrome, e ela criou o primeiro grupo de apoio para pessoas com pais autistas do mundo.
"Nunca tive medo da idéia de que há um lado ruim para a diferença neurológica", diz ela, que acha que autistas não são capazes de criar os filhos sozinhos. "Fomos muito atacados por representantes autistas, que não conseguem lidar com essa idéia. Para mim, a neurodiversidade inclui um quadro realista de prós e contras. Há aspectos do autismo que causam sofrimento, e seria ótimo se isso pudesse ser curado. Mas não acho que exista uma cura capaz de tirar os aspectos negativos e reter a diversidade genética da humanidade."
Não há uma perspectiva de cura para o autismo, pois ainda sequer se sabe o que o causa. Algumas hipóteses já foram descartadas pela ciência, como a "culpa" dos pais na criação dos filhos e a ação de vacinas, diz o psiquiatra Mercadante. Os estudos atuais são voltados ao papel da herança genética e de alguns fatores ambientais.
O que se sabe é que os cérebros de autistas são diferentes em três áreas principais: a amígdala, ligada à emoção e ao comportamento social, o giro fusiforme e o sulco temporal superior. As duas últimas costumam ser ativadas quando se olha para a face de alguém ou se escuta uma voz humana. Os autistas, ao verem ou ouvirem alguém, ativam outra área, responsável pela identificação de objetos.
O autismo costuma aparecer antes dos três anos --nessa idade, diz Mercadante, há uma "poda neural" que reestrutura o cérebro. Suspeita-se que, nos autistas, essa "poda" seja diferente, alterando alguns circuitos cerebrais. Por isso, crianças autistas podem regredir e até parar de falar nessa idade.
Foi o que aconteceu com Natália Boralli. "Ela ficou quase um ano e meio sem falar nada", lembra a mãe dela, Eliana. Até que, no aniversário de três anos da filha, ela a levou a uma loja de artigos para festa e deixou Natália livre para observar tudo. A menina ficou encantada com os enfeites da boneca Moranguinho, e Eliana decidiu decorar a casa com o tema, esperando vencer um pouco a barreira emocional do autismo.
"Coloquei tudo ao redor dela e disse: 'Isso é para você, porque é seu aniversário e eu te amo'. Então, ela, que nunca fixava o olhar em nós, me olhou por cinco segundos e disse 'mã'."
Para autista, simulação de "jeito normal" é prejudicial
Jim Sinclair,44, é autista, tem formação universitária em psicologia e é especialista em desenvolvimento infantil e processos de reabilitação. Nos anos 90, participou da criação de um dos primeiros grupos formados por autistas, a Autism Network International (ani.autistics.org), e se tornou um dos mais conhecidos ativistas pela defesa dos direitos dessas pessoas. Leia a seguir a entrevista concedida à Folha.


FOLHA - Quais são as diferenças entre um grupo formado por especialistas e parentes e um formado pelos próprios autistas?


JIM SINCLAIR - Eu diria que grupos de pais e especialistas têm uma maior tendência a ter objetivos "protetores" (trabalhar para nos manter em segurança), enquanto os grupos formados por autistas para eles mesmos tendem a ter metas mais relacionadas a direitos e liberdade, mesmo quando isso envolve correr riscos. A maior diferença reside no simples fato de um grupo ser dirigido "para" pessoas autistas, e outro, "por" pessoas autistas. Imagine um grupo destinado a promover os direitos das mulheres que fosse criado e dirigido por homens. Isso serviria? Você consegue imaginar um motivo pelo qual um grupo de mulheres não deva ser dirigido por elas? Que mensagem esse grupo transmitiria sobre a capacidade de as mulheres fazerem as coisas por conta própria?


FOLHA - Você critica as estratégias para ensinar os autistas a "simular" um comportamento social normal. Não é útil para os autistas saber como se comunicar com as outras pessoas?

SINCLAIR - Claro que é. E também seria útil para as outras pessoas saber como se comunicar conosco. Mas isso não é o mesmo que exigir uma simulação tão perfeita que torne impossível nos distinguir dos "neurotípicos". Suponha que, em vez de tentar entender o que você diz, eu me recusasse a responder suas perguntas a menos que você dominasse a língua inglesa como uma nativa e sem sotaque. Suponha, além disso, que eu diga que, para se comunicar com quem fala inglês, você tenha de parar de falar português, de se relacionar com quem fala português e até de pensar em português. Suponha que eu tentasse convencê-la de que o português é inferior ao inglês, de que você teria uma vida inexoravelmente vazia sem dominar inglês e de que você deveria se envergonhar se algum dia for vista falando português. Isso é semelhante ao que os "neurotípicos" fazem quando ensinam "habilidades sociais" a autistas.

FOLHA - Quais são as principais características da cultura autista?

SINCLAIR - Não há uma única cultura autista, assim como não há só uma cultura "neurotípica". Posso falar sobre a que evoluiu com a ANI, mas podem haver outras. Na ANI, há práticas como o respeito à hipersensibilidade sensorial dos autistas e outras envolvendo ecolalia (repetição da fala do outro). Há ainda certas tradições como o uso dos Interaction Signal Badges [crachás com dados sobre cada um, como hipersensibilidade a cheiros fortes ou a flashes fotográficos].

FOLHA - A ANI foi criada por autistas que se encontraram numa lista de discussão. Essa rede pode incluir aqueles que não têm as mesmas habilidades verbais?

SINCLAIR - Sim. Há pessoas com menos habilidade verbal que vêm para a Autreat (conferência anual da ANI) e se divertem muito. É difícil incluir pessoas que não são verbais em redes que ocorrem on-line, já que o e-mail é um meio verbal. Mas, quando há uma chance de os autistas ficarem juntos ao vivo, é definitivamente possível que eles participem também.
Da Assessoria de Comunicação do Cremepe.Com Informações da Folha de São Paulo.Repórter AMARÍLIS LAGE.