quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Entrevista com a psicanalista Graciela Crespin

QUANDO A CRIANÇA AUTISTA, SEM PALAVRA, GRITA, TODO MUNDO DIZ: “ISSO NÃO QUER DIZER NADA”. ENSINO AOS PROFISSIONAIS QUE LIDAM COM ELAS QUE O GRITO É UMA PALAVRA

Há cerca de 20 anos, quando a psicanalista Graciela Crespin, mãe de Clemencia e Pierre,começou a tratar seu primeiro paciente, o autismo ainda era visto como um problema que condenava a criança a uma vida isolada. “Não se sabia que o grito dos autistas deveria ser interpretado como uma palavra”, explica. Hoje, muitos deles falam, vão à escola, aprendem a ler, vivem com suas famílias, têm qualidade de vida mais próxima da que consideramos normal. Isso é possível graças ao trabalho de associações como a francesa PréAut (Association de Prévention Autisme), da qual Graciela é coordenadora e que trabalha há dez anos pesquisando indicativosque permitam a detecção precoce do autismo.Embora não se possa falar ainda em cura, pois as crianças tratadas apresentam seqüelas, é possível, sim, evitar que um quadro mais grave se instale. Para contribuir com a discussão, o Instituto da Família, que acaba de lançar o livro Clínica e Prática da Prevenção do Autismo, dirigido por Graciela, trouxe a especialista ao Brasil parauma série de palestras em setembro. Em entrevista exclusiva, ela nos contou que, assim como entender o autista ajuda a compreender melhor as crianças de um modo geral, saber mais sobre o autismo leva a um melhor entendimento sobre o filho da gente. Pode ser que, em outro planeta, o normal seja o modo autista de ver as coisas e o nosso é que seja estranho. O que importa é aceitar que diferenças sempre existirão e ajudar essas crianças a viver do melhor modo possível.

Como você começou a trabalhar com crianças autistas?
No início da carreira, eu trabalhava em centros pediátricos de prevenção naFrança. Aí comecei a me interessar pela investigação de como emergiam os processos psíquicos no bebê. Foi nessa época que conheci a primeira criança com sintomas autísticos. O menininho tinha dois anos e quatro meses e, quando me dei conta de que o problema dessa criança era muito grave, fui conversar com um dos grandes especialistasno tema. Eu queria levar o paciente até ele, mas o professor me disse: “Não, você é quem vai cuidar dele. E eu vou ajudá-la.”

E como está esse menino hoje?
Atualmente, tem 24 anos. A partir do momento em que aceitei o desafio de cuidar de uma problemática tão pesada, me dei conta de que essa dificuldade me ensinava muitas coisas para tratar crianças normais ou com dificuldades bem mais leves. E que o que eu sabia acerca do desenvolvimento da criança normal me serviria muito para tratar o autismotambém. Por exemplo, em relação ao impasse fundamental do ingresso na linguagem. Sabemos que os autistas não são nem surdos nem têm problemas de fonação e que, mesmo assim, não falam. A criança normal também nasce “muda”. E os processos que permitem à criança normal tornar-se uma criança que fala me permitiram criar técnicaspara, no caso de uma criança que é muda por ser autista, reproduzir a situação primordial e tentar suscitar a sua entrada no universo da linguagem.Quando a criança autista, sem palavra, grita, todo mundo diz: “Isso não quer dizer nada”.Ensino aos profissionais que lidam com elas que o grito é uma palavra. Quando a criança, por exemplo, no primeiro mês de vida, grita, naturalmente o adulto consideraque ela está sentindo alguma dor e fala com ela. Isso não sabemos fazer com a criança maior, que tem uma perturbação grave. E, quando aprendemos a fazê-lo, como se fosse uma situação primordial, em geral obtemos melhoras muito significativas.

É possível que comecem a falar?
Claro. Muitas crianças, se tratadas precocemente, ao longo do segundo ano de vida (e, se possível, antes), podem ingressar no simbólico, na socialização e na comunicação.

É possível falar em prevenção do autismo?
Essa é uma pergunta muito complexa, que não tem uma única resposta. Primeiro, os sinais que consideramos como precursores de patologias autísticas na investigação PréAut são uma hipótese que tem de ser verificada. Não podemos dizer, hoje, que seja verdade, senão não precisaríamos fazer toda a pesquisa. E a investigação se destina a provar que essa intuição clínica que temos se verifica sobre um grande número de casos. Esse é o objetivo principal do estudo. Nossa hipótese é a de que há um problema bastante específico da comunicação que é possível detectar no primeiro ano de vida; e temos razões para pensar que, quando essa particularidade da comunicação não se desenvolve, é nessa carência que vem a se desenvolver o funcionamento autístico.Isso sem levar em conta as causas, porque consideramos que existem muitos “autismos”, diferentes quadros clínicos cujos funcionamentos têm origens distintas, no geral, polifatoriais.


Além da psicanálise, a genética e a biologia também estudam o problema e buscam suas causas. Pesquisa-se uma causa biológica para autismo. O que você acha disso?
O mais importante é que as hipóteses organicistas ou genéticas não entrem em conflito com as psicanalíticas e vice-versa. Não é porque há uma origem genética que não existem componentes ambientais. Não é porque uma criança tem uma componente genética que eu não posso trabalhar com ela em uma terapia de relação.

É difícil comunicar à família, dizendo: “Seu filho é autista”. Qual o momento de fazer esse comunicado?
Neste momento, na França, com tudo o que circula na Internet, são os pais que chegam dizendo ao médico: “Meu filho é autista”. Agora somos nós que dizemos: “Espere um pouco, vamos avaliar”. Há uns 20 anos, o autismo era o horror absoluto, uma condenação que condenava os pais por terem sido maus pais e que condenava a criança a um déficit total, irreversível e permanente. Essas imagens estão se modificando rapidamente.Escrevi um artigo intitulado O Mito das Origens do Autismo, no qual falo dos estadosde sideração que produzem funcionamentos autísticos nos pais e que explicam a idéia deque o problema vem ao contrário.Quando se consegue revertê-lo, potencializamseos resultados com a criança, com o tratamento da criança.

HOJE, COM TUDO O QUE CIRCULA NA INTERNET, SÃO OS PAIS QUE CHEGAM DIZENDO AO MÉDICO:MEU FILHO É AUTISTA”. AGORA SOMOS NÓS QUE DIZEMOS: “ESPERE UM POUCO, VAMOS AVALIAR′

Parece que se fala mais, hoje, de autismo em jornais, revistas etc. Há mais casos hoje?
Esse é um grande debate. Por exemplo: o que se chama hoje de espectro autista não existia nos tempos de Kanner Leo Kanner, psiquiatra infantil norte-americano, que deu nome ao autismo], nos anos 40. Os autistas de alto-nível ou autistas sábios, com a chamada Síndrome de Asperger, eram considerados indivíduos muito particulares, mas não eram diagnosticados como autistas. Os autistas que conseguiam falar não eram diagnosticados como autistas. Só eram identificados como autismos os autismos graves,deficitários. Hoje, o espectro do que se consideram organizações autistas é infinitamente mais amplo. Há mais autistas hoje do que no século 18? Ninguém pode responder, porque não há dados.

As depressões maternais têm papel na constituição de uma personalidade autística?
Sim, estudos feitos nos anos 70, na França, sobre a incidência das depressões maternas na organização psíquica da criança evidenciaram que há correlações, mas em um só tipo: as depressões que chamamos de “brancas” ou sem sintomas. Quer dizer, as depressões das mães que continuam a fazer tudo “normalmente”, mas estão psiquicamente, afetivamente, ausentes da relação com a criança, sem que isso tenha manifestaçõesclínicas ruidosas. Porque, quando as manifestações são ruidosas, imediatamente o entorno reage e se ajuda a mãe e a criança.

Sem sintomas, como se pode perceber e fazer algo para ajudar essa mãe?
Percebe-se pelo estado clínico do bebê. Essa é uma das razões pelas quais essa lista de identificação de sintomas precoces é interessante, porque permite ter indicadoresclínicos do estado do bebê que podem levar a crer que algo não vai bem na relação do recém nascido com o entorno que o cuida.

Que tipo de sintoma aparece no bebê que pode gerar essa suspeita? Inconsolabilidade, transtornos alimentares, de sono, todas coisas muito mobilizantes. Como não há sintomas na mãe, não se entende por que essa criança está reagindo assim. Isso é um indicador clínico que pode levar a pensar que talvez essa criançaesteja com alguém que não o ouve ou não o vê. Mas o bebê também pode não ter manifestações ruidosas; pode apenas se deprimir. Então, a depressão precoce do bebê pode estar articulada a uma depressão materna. O bebê, provavelmente, teve uma fase ruidosa, não obteve resposta e já não diz mais nada. E pode ser que esse estado depressivo da criança não seja identificado até que formas de atraso no desenvolvimentosejam percebidas mais tarde.

Como é o trabalho? Os pais participam das sessões ou só as crianças?
Sempre solicito que os pais venham com a criança, a princípio, e que contem diante da criança quais suas queixas. Começo a consulta, antes de deixar os pais falarem, perguntando à criança se ela sabe por que os pais a trouxeram para me ver. E é possívelperceber, pela resposta da criança, em que medida ela subjetivou algo da dificuldade ou não. Isso vai me dar indicadores de como proceder.

Pode-se chegar a falar de cura do autismo?
No protocolo do estudo PréAut, já sabemos que há um certo número de crianças quechegaram a apresentar os critérios de risco e que foram revertidos muito rapidamente, mas ainda não terminamos o estudo para saber como essa criança vai estar organizada aos 3 anos e que não restou nada.Se você tivesse me perguntado isso há dez anos, eu diria que, talvez, certas crianças autistas pudessem ser curadas. Hoje penso que não. O que se chama de estado pós-autístico hoje (ou autismo tratado) não tem nada a ver com os autismo que evoluíram sem intervenção, quando a patologia se agravou progressivamente.Essas crianças tratadas, que vivem com a família, vão a escola, que aprendem a ler e escrever, se socializam, que vivem uma vida já muito próxima dasrepresentações da normalidade, têm uma organização subjetiva que difere de uma pessoa que não teve um acidente autístico em sua estruturação. Temos evoluções muito diferentes e não sabemos por quê. Nesse momento, são perguntas sem resposta.

É possível para um autista tratado desenvolver um tipo de relacionamento amoroso, como namoro, filhos?
Tenho entre meus pacientes um menino que vai completar 13 anos agora e que é o primeiro aluno de seu colégio secundário, brilhante, fica fascinado em comparar o tamanho das torres góticas da Catedral de Paris com as de outras cidades. Mas é um menino cuja dificuldade fundamental, agora na puberdade, é conviver com os outros jovens de sua idade. Ele diz: “Eu não gosto de conversar com os meninos porque sóinteressam a eles coisas que não me interessam. Também não gosto de conversar com as meninas porque a elas só interessam os meninos”. Ele e sente uma espécie de marciano. Não se sente como um menino que possa se constituir num objeto libinal para as meninas, entrar em toda a questão do desejo e da sexualidade. Essa defasagemé a maior seqüela da organização autística. Mas, quem sabe, em outro mundo, o normal seja viver se ocupando do tamanho das torres das catedrais góticas e os estranhos sejamos nós?

CLÍNICA E PRÁTICA DA PREVENÇÃO DO AUTISMO
Direção: Graciela C. Crespin. Primeiro título da coleção Família, Medicina e Psicanálise, do departamento editorial do Instituto da Família, é uma tradução dos cadernos PréAut,coordenados pela psicanalista na França. Fala sobre os sinais de risco autístico quepodem ser identificados precocemente e relata casos de famílias com crianças autistas. INSTITUTO DA FAMÍLIA (WWW.INSTITUTODAFAMILIA.ORG.BR), R$ 30

Fonte: revista pais e filhos

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